A valorização da memória e da tradição oral
Ao contar histórias, o professor está não somente narrando fatos, mas disputando a memória de seus alunos, valorizando a tradição oral.
Durante anos, como resultado da necessidade de se contrapor a uma história de tradição positivista, presa ao factual e interessada somente em narrativas de grandes feitos, a historiografia, quer a dos Annales, quer a de tradição estruturalista e marxista, caracterizou-se por um distanciamento brutal das narrativas.
No campo do ensino, essa movimentação também se fez presente. As narrativas históricas foram duramente criticadas, principalmente nos casos em que se apresentavam como a única forma de se ensinar História. Criou-se uma arena na qual, de um lado, estava a história crítica e, de outro, as narrativas.
Ao aluno cabia construir e movimentar conceitos, ver os interesses diferentes dos atores sociais, entender as reais estruturas de cada época, ouvir os vencidos. Conceitos, interesses e estruturas que, na opinião de muitos, eram cientificamente corretos, desprovidos de qualquer ideologia.
Mas, para alcançar sucesso, a atividade educativa necessita provocar no aluno sensações de prazer, de liberdade, de envolvimento, sentimentos esses recorrentes quando somos capturados por uma boa narrativa. Assim, são muitos os estudos recentes que afirmam não só a validade, mas também a importância de contar histórias como elemento integrante no cotidiano do professor de História junto aos seus alunos.
Ao contar histórias, o professor está não somente narrando fatos, mas interpretando-os, hierarquizando-os, tornando-os concretos para os seus alunos, e disputando a sua memória, valorizando a tradição oral rechaçada pela sociedade da informação, que se caracteriza pelo tempo curto, pelas frases sintéticas, pelo não encadeamento dos acontecimentos e pelo fato de eles ocorrerem sem autoria.
Com isso, levanta-se também a discussão sobre o saber científico e o saber popular, problematizando ao longo da História os momentos nos quais diferentes discursos – como o religioso, o científico ou o econômico – assumiram a hegemonia.
Em conjunto com outros professores de sua escola, você pode propor a criação de um espaço mensal ou bimestral de “contar histórias”. Vocês podem até pegar emprestado o nome de uma obra que cai como uma luva: “O caso eu conto como o caso foi”.
Nesse fórum, pessoas com experiências variadas, originárias da própria escola ou da comunidade, irão à escola para falar de determinado período histórico a partir de sua memória, priorizando o gênero narrativo. Os exemplos são inumeráveis: a ditadura militar, a descoberta da Aids, a chegada do homem à Lua, o impeachment do presidente Collor, o surgimento da bossa-nova, o que era ser uma mulher desquitada, o que era ser fã de determinado autor, a construção de uma nova estrada, o artesão ou artista famoso da região que passou a ter fama internacional, o padre que abandonou a batina, a morte de João Paulo I, casos ligados à história local, como enchentes, chegada do circo, dos primeiros telefones, programas de televisão – como dissemos, a lista não acaba.
Além de uma perspectiva interdisciplinar que se consolida na seleção dos temas e na escolha dos convidados, esse espaço cria no cotidiano escolar uma forma eficaz de aproximar a juventude de hoje de espaços de valorização das histórias contadas e das memórias coletivas e/ou individuas.
Cabe aos professores realizarem o retorno da palestra em sala de aula, articulando o lugar de fala do palestrante a sua visão dos fatos.
Professora contando história para alunos. Créditos: Comstock Images / Jupiter Images. |
Museu da Pessoa – Site no qual qualquer pessoa pode contar por meio de textos, fotos, áudios e vídeos fatos de sua vida.
São Paulo, minha cidade – Site no qual moradores de São Paulo contam suas memórias a respeito da cidade.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.